Saí do restaurante um tanto nauseada, não sei se pelo excesso de queijo no meu prato ou se pela frase que violentou meus ouvidos. Mas talvez o que tenha mais me chocado foi a resposta dada: “Mas uma bolsa dessas é tudo!”.
Pode até soar ao leitor que este diálogo seja típico de novela das oito, afinal, um país que têm 10% de suas crianças com menos de cinco anos sofrendo de desnutrição crônica e 30% de cidadãos vivendo abaixo da linha da pobreza, com até meio salário mínimo mensal (Fonte: Correio Braziliense, 14/11/2004), alguém achar normal gastar a “bagatela” de cinco mil reais em um acessório é, no mínimo, uma atitude de humilhação à condição social das classes mais empobrecidas.
Quero deixar bem claro que não sou comunista, Marx para mim não é nenhum Mestre, tampouco tenho o retrato de Fidel Castro na cabeceira da minha cama. Não é isso. O que me impressionou na conversa das “madames londrinenses” é o parodoxo que elas depositam nos valores materias e humanos. Lógica esta tão descabível que na saída do restaurante comecei a me perguntar se aquelas duas criaturas tinham alguma noção da realidade que as cerca por trás das redomas das vitrines das lojas caras e dos shoppings. (Aliás, shopping para mim é algo tão impessoal que me sinto um pouco "andrógina" andando dentro de um. Não gosto de locais onde as pessoas existem apenas com o propósito de consumirem e desfilarem com suas grifes como se estas fossem uma parte de seus braços ou uma extensão de seus corpos).
Voltando ao diálogo, o atento leitor poderá ainda me contestar dizendo que as madames fazem o que bem querem e entendem com o dinheiro de seus respectivos maridos, pois a elas lhes pertence. Mas é daí que justifico escrever este artigo e o título que lhe cabe: se o país ignora o próximo – no conceito mais espiritual do verbo “ignorar” – é porque uma burrice coletiva invade as classes mais abastastas, ou, porque não dizer, a limitadíssima elite e a hipócrita classe média “alta” (como dizia meu finado avô na época da inflação).
Limitadíssima porque – salvo Chico Buarque, Ariano Suassuna e um ou outro intelectual, político ou estudioso –, a esta classe não pertencem membros da inteligência do país. E quando me refiro à “inteligência”, incluo aqui as forças críticas e pensantes que contribuem para o crescimento da justiça social, da cultura e da harmonia no Brasil. Felizmente tal opinião não é minha exclusividade, pois como afirma o jornalista João Pereira Coutinho: “(...) ironicamente o Brasil não tem eleites. Tem antielites, incapazes de pensar o país como espaço comum”.
Quanto à hipócrita classe média “alta”, esta se move em passos de raposa em busca da presa: o sonho de status quo, de pertencer à elite. Hipócrita porque fingir ver “valores” na classe superior da qual corteja feito besta esfoemada de olho nos ovos “de ouro” da galinha. A mesma classe média que ambiciona o acúmulo de bens e os fetiches bregas da elite: fumar charuto em boates, ostentar camisa Polo, desfilar as cafonas bolsas Louis Vuitton.
Enquanto isso, ao cruzar a avenida em direção a meu carro – típico da crrrasse “média média”, ordinariamente média -, eis que se aproxima de mim um rapaz maltrapilho, negro, de dentição falha, mãos imundas e unhas encardidas e me pede um “trocadim”, pois havia “cuidado” do meu carro. (Pausa. Por um minuto penso: “Mas como é que alguém desnutrido e fraco assim proteje alguma coisa meu Deus?!”).
E como todo “bom” brasileiro tiro algumas moedas do bolso e dou ao moço uma quantia irrisória só para que ele me deixe partir e eu não tenha de ficar me lembrando da sua miséria estatelenate, pois a comida ainda pesa no meu bucho e a consciência também.
Volto para casa com a sensação de quem vive num mundo latente; intocável. Eu, limitada em minha dissimulada esmola; o rapaz, em sua pobreza material infinita; e as madames, paupérrimas de espírito, luz e amor ao próximo. Pois a meu ver, a burrice da pior espécie é a falta de amor.
P.S.: Tomando-se por base que uma cesta básica custa R$ 170,00, o valor gasto na bolsa da madame é o mesmo que 30 cestas.
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